O exército das vendas |
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VEJA (SP) • ESPECIAL • 21/7/2010 |
O velho porta a porta , hoje chamado de venda direta, emprega 2,5 milhões de brasileiros - e, para milhares deles, é um atalho para a ascensão social
BRUNO METER
Há nove anos, o baiano Guilherme Pólvora teve de deixar de vender peixe nas feiras de São Paulo. como fazia havia mais de duas décadas: a concorrência com os supermercados fora se tornando tão dura que ele não mais ganhava com seu trabalho - só perdia. O ex-feirante. porém, virou a seu favor essa situação adversa. Aproveitando a lábia cultivada em anos de pregão nas ruas, partiu para o segmento de vendas diretas, primeiro oferecendo carnês é, depois, cosméticos. Foi nesse último filão que ele se encontrou. Hoje, Pólvora emprega trinta profissionais, que o auxiliam na revenda de produtos de quatro empresas - e recolhe para si cerca de 15000 reais por mês. O paulistano Daniel Castro não foi premido pela necessidade, como Pólvora. Mas chegou a um resultado similar. Em 2009, trocou a segurança do expediente em uma empresa de energia elétrica, onde trabalhara por dez anos, por uma aposta aparentemente incerta: foi fechar pacotes de viagem em uma agência de turismo que opera com vendas diretas. Descobriu um talento insuspeito para abordar potenciais clientes e persuadi-los. Fatura em média 13 000 reais mensais, mais de quatro vezes o antigo salário. Em março, um mês de grande movimento, bateu um recorde na empresa, atingindo 35 000 reais.
Atividade quase tão antiga quanto a própria humanidade, a venda direta ou de porta em porta, como era chamada - resiste até às mais profundas transformações sociais e econômicas. As cidades hoje proporcionam infinitas oportunidades de consumo, e a internet se converteu em um poderoso motor de negócios. Mas, conforme indicam os números, essas facilidades em nada diminuem o apelo do vendedor que vai até o freguês, demonstra-lhe as supostas virtudes de seu produto e propícialhe, ainda, uns tantos minutos de atenção exclusiva e bate-papo. "O brasileiro é muito sociável, e aprecia esse contato pessoal no ato da compra", diz Paulo Quaglia, da Avon e também presidente da Associação Brasileira de Empresas de Vendas Diretas (ABEVD).
Nem todas as histórias de indivíduos que se aventuram nesse segmento resultam tão róseas quanto as de Pólvora e Castro. Mas muitas, sim, evoluem para á satisfação. Hoje, segundo a ABEVD, há no país 2,5 milhões de revendedores, e o setor passa por um crescimento explosivo. No ano passado, esse exército vendeu 1,7 bilhão de itens, de cosméticos a suplementos alimentares, livros e utensílios domésticos, e movimentou 21,8 bilhões de reais 18,4% a mais que em 2008. O primeiro trimestre deste ano confirmou a curva ascendente: venderam-se 5,2 bilhões de reais, um aumento-de 19% sobre-o mesmo período de 2009. Segundo os executivos do setor, muito desse impulso decorre da elevação de milhões de brasileiros à classe C, à qual chegam ávidos por consumir. Para esse novo freguês. o produto que vem até a sala de sua casa é virtualmente irresistível. É desse meio, também, que saem muitos dos vendedores: para a grande maioria, o porta em porta é apenas um reforço no orçamento doméstico, e raramente rende mais de 500 reais por mês. Mas, dado o ímpeto do setor, já se observa também um contingente expressivo de pessoas que se dedicam exclusivamente a essa atividade e, com o êxito nela, sobem alguns degraus na pirâmide social.
Tradicionalmente, a venda direta era quase um passatempo para mulheres que, em escala modesta, oferecia seus produtos a parentes, vizinhos amigos. Na última década, esse perfil se alterou. Em algumas empresas, os homens já somam 40% dos revendedores: também se tem verificado um maior ingresso de jovens, em particular universitários que desejam ganhar dinheiro sem comprometer as horas necessárias aos estudos. "Hoje muitos jovens nos, procuram para revender nossos produtos em seu círculo social", diz Marcelo Zalcberg, diretor-geral no Brasil dos suplementos alimentares Herbalife.
Para alguns profissionais, a venda direta pode ser uma tábua de salvação: são aqueles que perdem o emprego depois dos 45 anos e encontram dificuldade para se reintegrar no mercado de trabalho. Com experiência e boas redes de relações já constituídas, essas pessoas muitas vezes se tornam vendedores de êxito. É. sim. possível viver te muito bem) de vendas diretas, como prova a trajetória da família Cristóvão, de Ribeirão Preto - que chegou a ter duas locadoras de vídeo, mas abandonou esse negócio ao constatar que ganhava mais revendendo os produtos da Herbalife. Um sucesso dessa monta, porém, demanda preparo, dedicação e, sim, certa vocação inata para as vendas.
As exigências formais para o candidato a revendedor são tão generosas quanto possível: basta ter mais de 18 anos e vontade de trabalhar. Soma-se às facilidades o fato de que quase todas as empresas oferecem treinamento, e são marcas bem estabelecidas. que investem pesado em publicidade - ou seja, arcam com a parte do leão na tarefa de persuadir o freguês da qualidade de seus produtos. Também o investimento inicial requerido do candidato é baixo: as empresas em geral pedem que o vendedor compre um kit mínimo de produtos, relativamente fácil de revender. A partir daí, não é mais necessário sacar do próprio bolso. A média de lucratividade na venda é de 309 ou seja. a cada 100 reais vendidos, o vendedor arrecada 30. Com tais atrativos. não é de admirar que muitos se lancem -na aventura de forma meio errática. dedicando-se nos primeiros meses e depois. quando o entusiasmo arrefece, voltando à atividade só quando a necessidade aperta. Isso porque, se é fácil vender um pouco de vez em quando. a alternativa - a profissionalização - demanda atributos bem específicos, a começar pela facilidade para constituir boas relações. O revendedor eficaz tem de criar e - o mais difícil - manter uma rede fiel de clientes. "O profissional tem total liberdade para revender os produtos da maneira que se adéque ao perfil dele.
O revendedor faz seu próprio horário e carrega sua própria loja. na forma de catálogos ou mostruários. Mas deve estar ciente de que representa uma empresa - e, para vender mais, deve fazê-lo com empenho e dignidade. A comunicação é a proverbial alma do negócio. Erros de português, por exemplo, arrasam a credibilidade. A aparência também é essencial: não dá para vender produtos de beleza com o rosto coberto de acne, ou dietéticos quando se está vários números acima do que o figurino recomenda. De importância capital, ainda, é a convicção: o freguês em geral não é bobo, e fareja de longe os sinais de que o vendedor está tentando empurrar-lhe um produto que ele mesmo não usaria.
O momento de risco real, afirmam os especialistas, é aquele em que o novato eufórico com os bons resultados iniciais decide trocar um emprego estável pela revenda em tempo integral. A um mês de ótimo (aturamento, podem se suceder outros de vacas magras: toda forma de comércio está sujeita a ciclos sazonais, como picos de venda no Natal seguidos de baixa em janeiro, por exemplo. "Antes de um ano, é loucura largar o emprego", diz Szulcsewski -que recomenda até mais prudência: dezoito meses seria o tempo ideal para pesar a fidelidade da freguesia, a regularidade e organização do próprio vendedor e o retorno das suas vendas.
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